//Roseli Figaro: Mulheres jornalistas são as que mais sofrem na pandemia

Roseli Figaro: Mulheres jornalistas são as que mais sofrem na pandemia

Foto: objethos.wordpress.com

O próximo 11 de setembro marcará seis meses da declaração da pandemia do novo coronavírus pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Desde o primeiro surto confirmado, na província de Wuhan, na China, o mundo do trabalho sofreu intensas transformações. No jornalismo, as rotinas e práticas também precisaram ser adaptadas, trazendo ainda mais sobrecarga e instabilidade aos profissionais da mídia.

Essa realidade foi explicitada pelo relatório “Como trabalham os comunicadores em tempos de pandemia da Covid-19?”, do Centro de Pesquisa em Comunicação & Trabalho (CPCT). Para explorar os resultados do estudo, conversamos com Roseli Figaro, coordenadora da pesquisa e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP).

Realizado no mês de abril, o questionário do CPCT colheu respostas de 557 comunicadores de 24 estados brasileiros, Distrito Federal e Portugal. Jornalistas relataram acréscimo de horas na jornada – de duas a quatro, em média – e ritmo de trabalho mais pesado, tanto para profissionais da mídia tradicional como alternativa. Redações “virtuais” em aplicativos de mensagens demandam respostas imediatas dos comunicadores, o que dificulta a distinção entre ambiente home office e lazer em casa. Ainda, 331 respondentes utilizam seus próprios meios de produção (como computador e celular) para trabalhar, sem contar com apoio dos empregadores.

Em suas considerações finais, o relatório destaca a sobrecarga de trabalho das mulheres – um dado recorrente em outras pesquisass. O levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) com mães jornalistas, por exemplo, constata o esgotamento das trabalhadoras devido à  necessidade de equilibrar home office e cuidados com casa, filhos e alimentação. Já a Federação Internacional dos Jornalistas (IFJ, na sigla em inglês) conclui, a partir de dados colhidos em 146 países, que mulheres jornalistas apresentavam níveis de stress e ansiedade superiores aos seus colegas homens.

Para Roseli Figaro, a desigualdade de gênero entre jornalistas se tornou mais aguda durante a pandemia e merece maior destaque nos estudos acadêmicos. Como exemplo do agravamento dessa situação, cita o relato de uma participante da pesquisa: “estou há trinta dias num apartamento de 60 metros quadrados, com duas crianças, uma de três e outra de cinco anos, tendo que fazer a gestão de tudo e trabalhar’”. A professora questiona: “que suporte tem essa profissional para ter o mínimo de tranquilidade necessária e conseguir apurar, produzir uma informação e passá-la adiante?”.

A seguir, Figaro comenta os principais resultados do estudo realizado pelo CPCT. Discute também as lógicas de precarização do trabalho jornalístico, disparidades de gênero e como a monetização afeta determinados perfis profissionais.

“Parece que temos vergonha de falar que a jornalista sofre demandas – gestão do lar, filhos, família – de uma sociedade ainda bastante atrasada”

O relatório do CPTEC demonstrou a necessidade de reorganização dos trabalhadores na nova rotina imposta pela pandemia. Muitos não possuem contrapartida de seus empregadores e também não conseguem organizar satisfatoriamente o ferramental técnico e a infraestrutura física do trabalho. De que forma esses fatores tensionam a qualidade da informação jornalística? 

O home office traz um problema: o suporte, a infraestrutura para que o comunicador, sobretudo o jornalista, possa continuar a sua atividade – computador, conexão à internet de banda larga, smartphone, softwares para fazer edições, banco de dados para realizar pesquisa de imagens e sons. Isso demanda recursos, e apenas um número pequeno de empresas consegue supri-los.

Na falta deles, trabalhadores têm investido no próprio ferramental. Muitos também têm horas de salários cortadas, embora isso não signifique que há menos trabalho. Continua-se trabalhando muito porque é preciso pesquisar e criar alternativas à carência de recursos.

Outra implicação é a insegurança em relação à qualidade do trabalho ofertado. De fato, há limites para a produção informativa na cobertura da pandemia, e essas duas questões [o aumento da jornada de trabalho e a preocupação com o produto] trazem um desconforto muito grande ao trabalhador. Estão também relacionadas a aspectos mais gerais que dizem respeito à consciência do jornalista sobre o momento social e político econômico muito difícil para o conjunto da população. São vidas que estão em jogo – inclusive as vidas dos seus familiares e a sua própria. Há aí um componente, uma tensão, que dificulta o acompanhamento online sobre o número de mortes, casos, disponibilidade de leitos e hospitais nas cidades, além de toda a falta de apoio, política governamental e direção clara e direta sobre como tratar o problema. Tudo isso incide, sem dúvida nenhuma, na ação do jornalista para a produção do seu trabalho.

Além das questões de infraestrutura, há também implicações psicológicas envolvidas, como o medo do profissional ou de seu familiar adoecer, receio pelo futuro e sintomas de estresse. Como esse quadro impacta profissionais que lidam diretamente com a produção de informação sobre a própria pandemia?

A consciência dos jornalistas sobre a situação de saúde e de emprego no país está bastante reportada nas declarações dos nossos respondentes. Eles têm clareza que a informação é fundamental para que o cidadão possa se posicionar, tomar decisões, refletir, questionar as próprias informações.

Essa consciência mais ampla sobre a sociedade também tem implicações no trabalho, porque é parte do sofrimento deles. Jornalistas também são cidadãos que vivem no afastamento social, têm medo da contaminação, necessitam cuidar de familiares, contam com a possibilidade do desemprego, corte de salários, redução de projetos e clientes no caso de quem trabalha com assessoria de comunicação. Eles precisam fazer a gestão de si diante dessa dramática: a realidade que vivem e a necessidade da atividade de trabalho, porque ela pode trazer um pouco de luz a essa confusão toda.

Uma informação bem apurada e produzida pode fornecer orientações mínimas para a pessoa pensar qual é o melhor caminho a proceder diante de tantas dificuldades. É uma situação ímpar que demanda controle emocional muito grande sobre um desafio que não é do tempo e do espaço cotidiano do jornalista. A gestão do trabalho feita na pandemia exige muito mais equilíbrio da pessoa, o que causa estresse, adoecimento e um sofrimento muito grande, porque nossa ação também tem limites. Esse é o dilema: reportar um acontecimento e trazê-lo à tona, embora tenhamos poucas possibilidades para resolver problemas.

Em relação aos relatos de jornalistas que foram coletados na pesquisa, foi possível perceber diferenças significativas nas respostas daqueles que atuam como freelancers e dos que estão em arranjos econômicos alternativos, em comparação com profissionais de empresas ‘tradicionais’?

Jornalistas que trabalham como freelancers ou em novos arranjos do trabalho, geralmente em situação mais informal, padecem ainda mais com a instabilidade da pandemia , porque são os mais frágeis em termos de garantias de trabalho e de salário. Eles dependem muito do próprio trabalho para arranjar trabalho. Você não tem um emprego, e quando você está em afastamento social, esse “trabalhar para conseguir trabalho” é dificultado: muitos contratos foram quebrados, propostas foram adiadas, projetos não conseguem ser cumpridos devido ao distanciamento. Traz uma instabilidade muito maior.

Por outro lado, o que temos visto, sobretudo nas mídias alternativas e independentes, é uma grande colaboração entre os profissionais, de prestar solidariedade ao colega que precisa de um ferramental, de um software, banco de dados, fonte. Isso é muito salutar.

A pesquisa também aponta o acúmulo do trabalho remoto com a gestão da vida doméstica, especialmente no caso das mulheres. De que forma as questões de gênero atravessaram os relatos coletados na pesquisa, sobrecarregando as trabalhadoras?

No home office sobressai a questão de como fazer a gestão do espaço físico e do tempo do lar. Isso se mistura muito com a ideia do que é “tempo de trabalho” e “tempo fora do trabalho”. Na última década, pelo menos, a diferença vem se alterando e se torna cada vez mais tênue. Com a Covid-19 e a necessidade do afastamento social, a linha desapareceu. São inúmeros os relatos em que os jornalistas dizem não ter mais tempo fora do trabalho. Está relacionado com a gestão da casa, dos filhos e demais familiares. É um tempo muito compartilhado com o trabalho comercial.

A questão de gênero atravessa profissionais jornalistas há muito tempo, e nós temos tratado muito pouco disso. Parece que temos vergonha de falar que a jornalista sofre demandas – gestão do lar, filhos, família – de uma sociedade ainda bastante atrasada na compreensão dessas tarefas, que deveriam ser compartilhadas para permitir relações saudáveis e avançadas.

Como as demais profissionais trabalhadoras, a jornalista sofre dessas injunções sociais. Ela é assediada, moral e sexualmente, no âmbito do trabalho – há pesquisas internacionais, não só no Brasil, que comprovam isso. Há preconceito com a mulher que não tem tempo para cuidar dos filhos e não seria uma “boa mãe”.

Nós temos deixado de lado essas questões, não apenas no campo profissional, mas do ponto de vista das reivindicações e da própria formação, para dar mais suporte a essa mulher que atua. Temos a questão salarial, que é menor para elas, e a dificuldade de progredir na carreira. A limitação imposta a determinados assuntos que não é para você, mulher, cobrir. São relatos históricos que temos dentro da profissão.

No home office, isso se agudiza. São inúmeras que falam sobre a necessidade de fazer gestão do trabalho com os filhos. Tem uma fala magnífica de uma trabalhadora jornalista que pede socorro. Ela diz: “estou há trinta dias num apartamento de 60 metros quadrados, com duas crianças, uma de três e outra de cinco anos, tendo que fazer a gestão de tudo e trabalhar”. Que suporte tem essa profissional para ter o mínimo de tranquilidade necessária e conseguir apurar, produzir uma informação e passá-la adiante?

Sem dúvida nenhuma, não é só a jornalista, mas são as mulheres trabalhadoras as que mais estão sofrendo nesse período da pandemia. Porque elas são as cuidadoras, porque elas são as vítimas e porque elas são arrimo de família. E aquelas que não o são do ponto de vista econômico, são do ponto de vista emocional – são a gestão da casa, o equilíbrio da própria família. Precisamos muito discutir essas questões: o tipo de suporte e atitude que temos que tomar no enfrentamento e apoio a todas as mulheres.

Por fim, a pesquisa também indica o acúmulo de funções dos jornalistas participantes da pesquisa, por vezes desempenhando papeis profissionais distintos e até opostos ao jornalismo. O relatório sugere alguns motivos possíveis para essa polivalência – desde uma formação universitária ampla até baixos salários e desregulamentação da profissão. Como jornalistas avaliam a relevância do seu trabalho no contexto da pandemia da Covid-19? É possível ainda apostar em uma “matriz iluminista” do jornalismo como defensor da cidadania, em meio à cultura de métricas nas redações, como o relatório aponta ao final?

As condições de precarização do trabalho do jornalista são históricas e, mais recentemente, a questão da desregulamentação da profissão têm sido um fator preocupante no que diz respeito ao futuro do jornalismo. A lógica comercial do negócio jornalístico mudou muito na última década. A monetização por meio da publicidade programática – vinda da extração e mineração dos dados dos usuários da internet – é uma dramática para o jornalismo porque estabelece o clique. É uma audiência que não se dá exatamente pela escolha do produto, mas encenada por um processo de persuasão, de produção de títulos, temas, assuntos. Então como vou produzir uma pauta que me dê cliques? Você deixa de fazer a cobertura do que é, de fato, informação, para buscar temas, assuntos e as formas de apresentá-los com base muito mais na lógica da circulação do dinheiro.

Estão aí as consequências dessa lógica de monetização mostradas pelas fake news: ao contrário do que se pensa, não são processos amadores, de pessoas comuns, do cidadão mal informado que quer fazer uma brincadeira. São lógicas profissionalizadas e com investimento muito alto. Esse mecanismo de circulação das informações falsas monetiza empresas, agências, marcas – são muitas as denúncias sobre isso. Inclusive um dos principais engenheiros do caos, conforme existe um livro com esse nome [escrito pelo cientista político Giuliano da Empoli], foi preso recentemente.

Quero dizer com isso que a lógica de desregulamentação profissional é mais ampla e tem a ver com o que está acontecendo com as empresas de comunicação e de plataforma – hoje, as grandes colonizadoras dos recursos que estão aí no mundo. Mas o que isso implica, então, no trabalho do jornalista? Posso dizer que o enfrentamento a essa situação revela dois perfis profissionais, com todas as problemáticas que já apontamos em nossas pesquisas e que retornam agora no relatório da Covid-19 – desemprego, baixo salário, desregulamentação, exigências multiplataformas, ritmo acelerado, densificação do trabalho etc.

Um perfil enfrenta essa discussão. Busca resistir à lógica de transformar o jornalismo em entretenimento, em um negócio qualquer. Há aí uma ação de resistência pela boa qualidade do seu trabalho, pelo afinco na cobertura, pelo questionamento. É no sentido do que você me pergunta sobre essa matriz iluminista – aqueles valores pelos quais a modernidade se institui, como razão, igualdade, fraternidade, liberdade, e que até hoje não consegue cumprir, como bem diz [o filósofo alemão Jürgen] Habermas. E o jornalismo tem tudo a ver com isso, ou pelo menos nasceu na defesa desse discurso, sempre no contraditório. Ao ser um negócio, ele pode desrespeitar esses princípios. Mas, sendo ao mesmo tempo fundado por eles, busca regrar e regulamentar os interesses do negócio.

Existe outro perfil – e nós não podemos achar que todo mundo está no mesmo barco –, que é aquele orientado por um veio pragmático do sucesso no emprego, na carreira. E sucesso não quer dizer sempre que faça um bom trabalho. Nós temos aí, no mundo todo, em todas as áreas, “n” exemplos de profissionais ditos bem sucedidos do ponto de vista monetário. Do ponto de vista do trabalho que realiza, a gente pode fazer muitas questões. Esse segundo perfil não está preocupado com a matriz de valores que fundam o jornalismo, mas com seu progresso econômico. É uma visão do jornalismo como um produto comercial. Já ouvi muitos jornalistas, em minhas pesquisas, com essa frase: “é um produto como outro qualquer. Eu presto um serviço e ponto”. Não tem esse lugar que a gente busca destacar para o jornalista como um profissional ético, preocupado com a sociedade e o bem estar comum. Acho que a precarização, a desregulamentação da profissão e essa lógica da monetização fortalecem esse segundo perfil, que entende o jornalismo como um negócio como outro qualquer.

Fonte: objETHOS